O último final de semana foi agitado para os palcos mineiros: os musicais "Gonzagão, A Lenda" e "Ópera do Malandro" trouxeram a Belo Horizonte entretenimento de qualidade exaltando a produção cultural do nosso país. Ambos musicais são produzidos pela Sarau Agência de Cultura, da produtora Andréa Alves, e o elenco é composto pelos artistas muito talentosos da Cia Barca dos Corações Partidos, assim nomeada em alusão à trupe de artistas itinerantes de "Gonzagão". As produções ficaram em cartaz no Grande Teatro do SESC Palladium entre os dias 15 a 17 de maio, sendo que o horário das matinês era destinado as apresentações de "Gonzagão" e as sessões da noite, à "Ópera". Há membros do elenco que atuam nas duas montagens, o que valoriza ainda mais o trabalho artístico de companhia que num breve intervalo de pouco menos de duas horas se prepara para dar vida a personagens e sonoridades totalmente diferentes, mas igualmente brasileiríssimas.
"Gonzagão, A Lenda" é tributo a obra de Luiz Gonzaga, dotado de um regionalismo característico e que o consagraram como o Rei do Baião. Diferente do que se pensa (até pela recente leva de musicais brasileiros) o musical não é biográfico: a direção e texto de João Falcão optam por contar a história de Gonzagão de maneira livre, trazendo fatos biográficos narrados de maneira teatral, entremeados pelas músicas, fatos e mitos da vida do cantor. O musical foi contemplado no Prêmio Bibi Ferreira e Prêmio de Qualidade Shell, sendo um sucesso de público e crítica, ficando em cartaz ininterruptamente desde sua estreia no Rio, fazendo temporada em São Paulo e turnês pelo país. Esse fim de semana, foi a segunda vez que o musical veio à Belo Horizonte.
O musical é impregnado pelo regionalismo nordestino em vários aspectos, além da música: Nos cenários e figurinos, nos adereços de cena (que tem uma plástica muito interessante), no sotaque dos atores, nas piadas e verbetes; criando uma estética e atmosfera única, onde os atores se tornam grandes contadores de história confortavelmente desempenhando seus papeis com naturalidade e segurança. Aliás, a força do elenco é algo memorável: as expressões corporais, o tônus em cena e a potência das vozes que conquistam a plateia. O atores (e atriz) se revezam em diversas personagens que compõem a trupe da Cia Barca dos Corações Partidos, trazendo particularidades para cada uma delas, mas ao mesmo tempo, permitindo-se a transitar entre o personagem biográfico e o plano poético e ficcional, já que o musical não se limita a contar de forma linear a história de Gonzagão.
Esse desvinculo com a narrativa biográfica traz a liberdade para a criação de momentos inéditos, como por exemplo o fictício encontro entre Gonzagão (ainda jovem) com o Rei do Cangaço, Lampião, interpretado de maneira brilhante por Eduardo Rios: essa cena é um dos pontos mais divertidos, onde vemos contos e estórias surgirem do confronto entre eles. Outro grande destaque da peça é da atriz Larissa Luz, com sua voz marcante e envolvente, vê-la como Rosinha, cativando os homens da companhia e se divertindo na interpretação de "Xote das Meninas" é algo que deixa o musical mais interessante, trazendo um toque de feminilidade, equilibrando definitivamente a diferença entre os oito atores e a uma atriz.
Vale mencionar que vocalmente o musical é gostoso de se escutar: as vozes em harmonia, as músicas com belos arranjos bem encaixadas no roteiro e banda (que fica visível no palco) conduz o espetáculo com maestria, sendo ininterrupta por grande parte do espetáculo.Mas, sem dúvidas, o ponto alto do musical é durante o momento em que cantam, o elenco todo, a tão conhecida música "Asa Branca". A plateia se rende ao musical e se restavam dúvidas sobre o gostar ou não, elas se esvaem nesse momento, e muitos saem do teatro maravilhados e acabam adquirindo o CD.
Encantado com "Gonzagão, A Lenda", fiquei para sessão seguinte para assistir "Ópera do Malandro". Também dirigido por João Falcão, o musical é uma remontagem do clássico musical de 1978 de Chico Buarque: Ambientado no Rio de Janeiro dos anos 1940, a Ópera conta a história do contrabandista Max Overseas metido em confusões por conta do seu casamento secreto com a filha de Durán, dono dos bordéis da Lapa, que não tem afeto algum pelo malandro. Inspirado em "A Ópera do Mendigo'’ (1728), de John Gay, e em "A Ópera dos Três Vinténs' (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill, o musical começa em grande estilo com o número "O Malandro", que traz o elenco inteiro em uma coreografia bela e muito bem ensaiada, exibindo os maravilhosos figurinos de Kika Lopes, sem contar a iluminada presença de cena de Larissa Luz (arrasando outra vez) como João Alegre.
Mais uma vez, o elenco é fantástico! Larissa é a única mulher novamente, mas dessa vez os atores se travestem de mulheres para viver as personagens femininas. Ricca Barros e Adrén Alves, como Durán e Vitória respectivamente estão brilhantes: a cumplicidade cênica entre os dois e a boa construção de personagem contribui para os momentos mais engraçados do musical. Cada um dos atores tem seu momento dentro do musical: A plateia responde com gargalhadas ao surto de Dóris Pelanca (Rafael Cavalcantti), se comove em risos com o drama de Fichinha (Renato Luciano) e é claro, é arrebatada por Genivaldo (Eduardo Landim) durante a perfomance de "A Geni e o Zepelim". A versatilidade dos atores é notória, seja como os malandros do "negócio" de Max ou como as Muchachas de Copacabana, a interpretação e canto são carregadas de energia e entrega.
O timing da comédia, por meio de piadas inteligentes é perfeito, o estilo da fala rápida das personagens desperta a atenção do público para conteúdo das falas e, nos faz valorizar o texto da peça muito bem escrito e construído sob um pano sociopolítico de forma a apresentar uma crítica social que continua pertinente nos dias atuais: a opressão do proletariado pelos patrões, a irregularidades e ilegalidades dentro do cenário nacional e a discriminação. O início do segundo ato começa de maneira mais tensa, onde a crítica social começa a ganhar peso dentro da narrativa, estendendo-se até o desfecho do musical, que termina de forma surpreendente, fazendo uma sutil alusão à censura vigente nos anos que Chico escreveu a história. Sem dúvida "Ópera do Malandro" é uma obra que nos faz refletir sobre a condição da sociedade e ter grande admiração pelo legado de Chico Buarque à musica e ao Teatro Musical Brasileiro.
O sambista Moyseis Marques na pele de Max Overseas, nos faz torcer pelo personagem, mesmo que esse seja o anti-herói, com uma vida totalmente complicada por conta dos seus interesses nada nobres. Ressalto também a brilhante canção "A Ópera do Malandro" interpretada por todo elenco nos minutos finais da peça, que nada mais é do que uma adaptação e texto de Chico para músicas das óperas "Rigoletto" de Verdi, "Carmen" de Bizet, "Aida" de Verdi, "La Traviata" de Verdi e "Tannhäuser" de Wagner. Entre deusas e bofetões, entre parangolés e patrões, João Falcão deu nova vida e vigor ao clássico buarquiano, mantendo viva sua obra e deixando uma bela homenagem ao setentenário do cantor e compositor: A praça dessa vez foi BH, mas esperamos que a Cia Barca dos Corações Partidos continue a levar a "Ópera" e "Gonzagão" para muitos outros destinos